sábado, 2 de fevereiro de 2013

Deus, tempo e eternidade (Parte I)

*William Lane Craig

É um grande prazer estar aqui, e fiquei particularmente feliz que Walter tenha mencionado a Sociedade Filosófica Evangélica [Evangelical Philosophical Society]. Deus tem realizado uma obra notável no campo da filosofia no âmbito anglo-americano, e o crescimento da Sociedade Filosófica Evangélica é apenas uma evidência disso. Trouxe comigo alguns exemplares do nosso periódico Philosophia Christi, para quem quiser conhecê-lo mais de perto. Recebemos tanto a membros associados como a membros efetivos na Sociedade. Os dois tipos de membresia incluem uma assinatura do periódico; portanto, convido-os para depois darem uma olhada nele, se tiverem interesse.
No programa, o tópico sob o qual estou inscrito para falar hoje é a eliminação do tempo absoluto pela teoria especial da relatividade. Todavia, durante o intervalo, mudei de ideia acerca do tópico e, ao ouvir Sir John ontem, fiquei contente por tê-lo feito, pois considero que o Professor Polkinghorne solapou com grande eficácia a ideia de que a teoria especial da relatividade eliminou o conceito de Newton de tempo absoluto. Segundo afirmou Sir John, a noção de tempo, ou de temporalidade, é no fundo uma noção metacientífica ou metafísica e, portanto, não pode ser, em última análise, constatada pela ciência. Na verdade, seria muito ousado da minha parte afirmar que a teoria da relatividade não nos ensina realmente nada sobre a natureza do tempo, mas tudo sobre as nossas medidas físicas do tempo. Assim, tenho a satisfação de mudar o meu tópico, abandonando especificamente a teoria da relatividade para tratar da discussão mais geral sobre o tópico “Deus, tempo e eternidade”.
Deus, declara o profeta Isaías, é “o Alto, o Sublime, que habita a eternidade” (Is 57.15). Por ser profeta, e não filósofo, Isaías não parou para refletir acerca da natureza da eternidade divina. Ser eterno significa, no mínimo, não ter começo nem fim. Afirmar que Deus é eterno significa minimamente que ele jamais veio à existência e nunca deixará de existir. Existir eternamente é existir permanentemente.
Dito isso, devemos notar que há pelo menos duas maneiras como algo pode existir eternamente. Uma maneira seria existir onitemporalmente, quer dizer, em cada instante do tempo. E, se o tempo for ampliado infinitamente tanto para o passado quanto para o futuro, então, o ser que existir onitemporalmente existiria sem princípio nem fim. Ele jamais poderia vir a existir nem deixar de existir; existiria permanentemente. E, tipicamente, a Escritura refere-se a Deus nos termos da sua duração eterna, onitemporal. Por exemplo, Salmo 90.2 diz: “Senhor, tu tens sido o nosso refúgio, de geração em geração. Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade, tu és Deus”. A imagem aqui, na mente do salmista, é a de um Deus onitemporal que permanece todo o tempo, da eternidade passada à eternidade futura.
Por outro lado, um ser poderia existir eternamente, sem começo nem fim, se tal ser fosse absolutamente atemporal; quer dizer, um ser que transcendesse completamente o tempo, desprovido de localização temporal e, portanto, sem extensão temporal, mas existindo exclusivamente fora do tempo, não teria princípio nem fim. Tal ser existiria, por assim dizer, num “presente” único e atemporal. Embora a Escritura não se refira a Deus explicitamente nos termos dessa eternidade atemporal, há, entretanto, algumas passagens bíblicas que sugerem a transcendência extratemporal de Deus. Por exemplo, Gênesis 1.1 diz: “No princípio, criou Deus os céus e a terra”. E o texto segue descrevendo a sua criação do primeiro dia, do segundo, do terceiro, do quarto e assim por diante. Portanto, o princípio vislumbrado pelo autor de Gênesis talvez não seja simplesmente o princípio material do universo, o cosmos, mas um princípio em si mesmo. Ora, uma vez que Deus não passou a existir, isso indicaria que Deus, de algum modo difícil de expressar, existia além do princípio do tempo, além do começo do tempo no universo descrito no versículo 1.
Da mesma forma, há no Novo Testamento uma série de passagens interessantes que falam da existência de Deus antes do tempo. Por exemplo, na doxologia que finaliza o livro de Judas, versículo 25, lemos: “ao único Deus, nosso Salvador, mediante Jesus Cristo, Senhor nosso, glória, majestade, império e soberania, antes de todas as eras, e agora, e por todos os séculos”. Nessa passagem, em quase inevitável façon de parler, ou modo de falar, o autor refere-se a Deus como existente antes de todo o tempo; em certo sentido, Deus existe fora do tempo. Se o tempo for finito e tiver um princípio, então, Deus, sendo eterno, tem de existir além do tempo de algum modo.
Assim, os dados bíblicos não são claros quanto à natureza da eternidade divina. Algumas passagens dão a entender que Deus seria onitemporal e outras, que ele seria absolutamente atemporal, e, portanto, é impossível decidir essa questão biblicamente. Temos de voltar nossa atenção para a reflexão racional, teológica e filosófica para julgarmos a natureza da eternidade divina.
Agora, neste ponto, alguém poderia perguntar: “Por que isso? Por que não nos contentamos com a afirmação bíblica de que Deus não tem princípio nem fim e existe permanentemente, parando aí sem tentar decidir entre essas duas teorias concorrentes quanto à eternidade divina?”. Gostaria de sugerir duas razões por que considero importante mergulharmos nesse tópico mais profundamente e não nos contentar apenas com a interpretação minimalista.
A primeira razão é de natureza apologética. Ou seja, o naturalismo moderno costuma atacar o teísmo, ou a crença em Deus, não apenas com base na falta de evidências para a existência de Deus, mas porque, como às vezes eles alegam no papel de naturalistas, o próprio conceito de Deus é incoerente, e, portanto, não pode existir nenhum ser cabível nesse conceito. Um bom exemplo disso seria o premiado físico P. C. W. Davies em seu livro God and the New Physics, 1 um desenfreado campeão de vendas quando foi publicado pela primeira vez, lançando instantaneamente Davies à fama como um dos melhores popularizadores da ciência em nossos dias. Davies afirma que Deus não pode ser nem temporal nem atemporal. Ele diz que Deus não pode ser atemporal porque a Bíblia o descreve como uma pessoa, mas as pessoas são por natureza inerentemente temporais. Elas agem e reagem, são seres conscientes que deliberam, planejam e se recordam. Elas pensam a respeito das coisas. Elas pretendem fazer coisas e levam adiante seus projetos. Todas essas coisas são atividades temporais, e, portanto, se Deus for pessoal como a Bíblia afirma, ele não pode ser atemporal.
Por outro lado, afirma Davies, Deus também não pode ser temporal. Porque, se ele existir no tempo, estará sujeito às leis da teoria da relatividade que governam espaço e tempo e, por essa razão, não poderá ser onipotente, pois está debaixo das leis da natureza. Desse modo, o teísta é confrontado por um dilema. O teísta crê que Deus é pessoal e onipotente, mas, se for as duas coisas, não poderá ser atemporal nem temporal; logo, um Deus assim não pode existir. O Deus da Bíblia não existe.
Ora, para responder a pessoas como o Professor Davies, será simplesmente fútil citar versículos da Bíblia, pois seu argumento é que o conceito bíblico de Deus é incoerente. Por isso, o teólogo cristão precisa munir-se de algum modelo coerente ou teoria da eternidade divina que escape do dilema de Davies.
A segunda razão por que considero que não podemos permanecer calados é doutrinária. Quer dizer, por bem ou mal, já existe um sem-número de declarações descuidadas sobre a doutrina da eternidade divina, e, por isso, não há sentido em ficar calados agora. O gato já escapou do saco! Nos púlpitos, os pregadores fazem constantemente declarações como “estaremos com o Senhor na eternidade”, e assim por diante. Muitas vezes penso que essas afirmações são teologicamente inexatas. Uma boa ilustração desse problema é o livro Disappointment with God, 2 do célebre autor cristão Phillip Yancey. Bem, quero dizer desde já que gostei de ler Disappointment with God e achei-o significativo e comovente. Apesar disso, o ponto principal da solução de Yancey para o problema da decepção com Deus — ou seja, a decepção causada pelo sofrimento e o mal gratuitos que Deus permite em nossas vidas —, o aspecto central para a sua solução é a doutrina de Yancey sobre a eternidade divina. Mas, quando se lê a sua explicação para a eternidade, descobre-se que ela contradiz a si mesma. Na verdade, ele adota duas analogias para a eternidade divina que defendem visões mutuamente excludentes. Uma sustenta a atemporalidade e a outra, a onitemporalidade divina. Assim, essa incoerência lógica finca-se no âmago do seu livro e deixa sem resposta o problema da decepção com Deus.
Portanto, como cristãos reflexivos, penso que não podemos simplesmente nos dar ao capricho de continuar calados quanto à natureza da eternidade divina. Precisamos nos envolver em projeto que selecione alguma teoria ou modelo de eternidade divina que seja biblicamente fiel e logicamente coerente.
Então, depois do que foi dito, quero destacar que não fazemos isso dogmaticamente, pois as Escrituras estão abertas a esse respeito. A teoria que desenvolvermos será sustentada experimentalmente e apresentada como um modelo sugerido ao exame e à avaliação da comunidade cristã. E, na verdade, quando se contempla o cenário contemporâneo, descobre-se que os acadêmicos cristãos divergem de fato no modo como entendem a eternidade divina. Tradicionalmente, a eternidade de Deus tem sido compreendida nos termos da atemporalidade. Deus simplesmente transcende o tempo; ele não existe no tempo. Ele não existe agora, mas existe simplesmente de modo atemporal. Entre os maiores proponentes dessa perspectiva contam-se Santo Agostinho, Boécio, Anselmo e Tomás de Aquino. No cenário contemporâneo, filósofos como Eleonore Stump e Norman Kretzmann, Paul Helm, Brian Leftow e John Yates defendem todos a teoria da atemporalidade divina.
Por outro lado, há também um número considerável de pensadores que defendem a temporalidade de Deus. Entre os autores clássicos, podemos citar João Duns Escoto ou Guilherme de Ockham. Isaac Newton, o grande pai da física moderna, no seu comentário a Principia, impresso que consta no material recebido por vocês para esta conferência, defendia a temporalidade divina. No cenário contemporâneo, pensadores como Alan Padgett, Richard Swinburne, Stephen Davis e Nicholas Wolterstorff têm todos eles optado por modelos da temporalidade divina.
Obviamente as duas visões não podem estar certas, pois uma contradiz a outra. Dizer que Deus é atemporal é simplesmente afirmar que ele não é temporal. Portanto, uma é a negação, ou a negativa, da outra. Se Deus for atemporal, ele não será temporal; se for temporal, então, por definição, não será atemporal. É comum os leigos dizerem: “Bem, por que Deus não pode ser as duas coisas? Por que não pode ser tanto temporal quanto atemporal?”. Bem, o problema com essa resposta é que, a menos que se apresente um modelo no qual essa alegação faça sentido, ela, de imediato, contradiz a si mesma e, logo, não pode ser verdadeira. É como afirmar que algo tanto é preto como não-preto. Isso é logicamente impossível, a não ser que se forneça algum modelo que supra uma diferença que torne possível o argumento. Por exemplo, algo pode ser preto de um lado e não-preto do outro. Ou ser preto num momento, mas ser não-preto mais tarde, noutro momento. Portanto, caso se pretenda sustentar que Deus é tanto temporal quanto atemporal, é indispensável fornecer algum modelo que dê sentido a isso. Nesse caso, obviamente, nenhuma das duas alternativas serviria, pois uma parte de Deus não pode ser temporal e a outra atemporal, porque, como ser imaterial, Deus não tem partes separáveis. Ele não se compõe de partes. Nem é possível afirmar coerentemente que Deus é atemporal num instante e temporal noutro, porque é claramente autocontraditório afirmar que ele é atemporal em determinado tempo. Essa é uma contradição de termos. Logo, as duas visões acerca da eternidade de Deus não podem estar certas. Temos de decidir se Deus é atemporal ou temporal.
Portanto, o que eu gostaria de fazer hoje é examinar primeiro os argumentos favoráveis e contrários à atemporalidade divina e depois analisar os argumentos favoráveis e contrários à temporalidade divina.
Ora, descobri que a maioria dos argumentos favoráveis à atemporalidade cuja literatura examinei é claramente falaciosa ou, na melhor das hipóteses, inconclusiva. Mas há um argumento favorável à atemporalidade que considero realmente muito persuasivo, o qual se baseia na incompletude da vida temporal. A vida temporal é radicalmente incompleta visto que ainda não temos nosso futuro e já não temos mais nosso passado. Nosso passado está continuamente indo embora, e estamos sempre buscando o futuro que não temos. Na existência, tudo o que temos de permanente é o momento presente, que está sempre fugindo, sempre se desvanecendo, sempre passando. É assim mesmo a única coisa que temos de permanente na existência, como seres temporais. A nossa vida é, assim, radicalmente efêmera e tem permanência demasiadamente tênue na existência. Mas isso parece incompatível com a vida de um ser perfeitíssimo, como é Deus.
Anos atrás, fui convencido inesperada e poderosamente da efemeridade da vida temporal quando lia o livro Little House in the Big Woods, 3 de Laura Ingalls, para nossos filhos pequenos, Charity e John. Ora, não dava para esperar que esse livro fosse uma fonte de percepção filosófica, mas, à medida que chegava aos parágrafos finais que encerravam o livro, fiquei absolutamente atordoado com o que li. (Ele não causou tanto impacto em meus filhos, mas atingiu-me como um martelo!). Eis o que ela escreveu:
As longas noites de inverno, lareira e música chegaram de novo [...] A voz forte e doce do Paizinho cantava com suavidade:
“Poderíamos esquecer os velhos conhecidos,
E jamais trazê-los à memória?
Poderíamos esquecer os velhos conhecidos,
E os dias de outrora?
E os dias de outrora, meu amigo,
E os dias de outrora,
Poderíamos esquecer os velhos conhecidos,
E os dias de outrora?”
Quando o violino parou de cantar, Laura chamou de mansinho, “Que são dias de outrora, Paizinho?”
“São os dias de muito tempo atrás, Laura”, disse o Paizinho. “Vá, agora durma”.
Mas Laura ficou acordada um pouco mais, ouvindo o violino do Paizinho tocando suavemente e o som solitário do vento nas árvores do Grande Bosque. Ela olhou o Paizinho sentado no banco junto à lareira, com a luz das chamas refletindo no cabelo e na barba castanhos e reluzindo no violino marrom com tons de mel. Olhou a Mãezinha, tricotando e balançando de leve a cadeira.
Ela disse a si mesma: “Isto é o agora”.
Estava feliz que a casinha aconchegante, seu Paizinho, sua Mãezinha, a lareira e a música eram o agora. Não poderiam ser esquecidos, pensou ela, porque o agora é agora. Não pode nunca ser muito tempo atrás. 4
O que torna essa passagem tão comovedora, evidentemente, é que agora o momento no qual o pensamento de Laura Ingalls era tão real, era “o agora” para ela, é muito tempo atrás. Passou, foi-se para sempre! A Mãezinha e o Paizinho passaram. A fronteira americana passou. A própria Laura Ingalls Wilder passou. Os dias que ela chamou de “dias felizes e dourados” foram-se, passaram-se para sempre, jamais serão recuperados. O tempo tem um modo selvagem de consumir a existência, convertendo em tênue e fugaz nossa reivindicação de existir. E, certamente, isso é incompatível com a vida de um ser perfeitíssimo, como Deus. Um ser perfeito deve ter a vida toda de uma vez, completa, vida que jamais vai embora nem ainda está por vir. Noutras palavras, a vida de um ser perfeito não pode ter senão uma existência atemporal na qual ele existe num eterno agora que nunca passa.
Esse argumento favorável à atemporalidade divina atinge-me como extremamente plausível e poderoso. Mas ainda não penso que seja totalmente demonstrável, pois considero que a transitoriedade do tempo é reduzida para um ser onisciente. Em parte, a razão para que os dentes do tempo nos pareçam selvagens é porque não temos na mente a lembrança total do passado nem a antecipação do futuro. Mas, para um ser onisciente, que conhece completamente o passado, o presente e o futuro como se fossem exatamente agora, a natureza transitória da passagem do tempo não é motivo para tanta melancolia. Deus tem a capacidade de lembrar-se dos eventos passados e de revivê-los com tanta vividez e realidade como se fossem presentes. Assim também, ele conhece antecipadamente os eventos que ocorrerão no futuro com o mesmo tipo de realidade com a qual conhece os eventos presentes. Portanto, para um ser que tem total lembrança do passado e total conhecimento antecipado do futuro, a passagem do tempo não é um defeito tão severo e prejudicial quanto é para nós, criaturas finitas e temporais. Todavia, na ausência de argumentos contrários favoráveis à temporalidade divina, considero realmente que esse argumento oferece fundamentos plausíveis para afirmar que Deus é atemporal.
Então, que objeções podem surgir contra a atemporalidade divina? Bem, uma das objeções mais comuns que é levantada na literatura é que atemporalidade e personalidade são incompatíveis. As pessoas se envolvem em atividades como antecipação do futuro e lembrança do passado; na deliberação e no pensamento discursivo; em provar sentimentos conscientemente. Todas essas atividades são temporais. Por isso, afirma-se que é incoerente a ideia de uma pessoa atemporal.
Seria esse um bom argumento? Não estou convencido que seja uma boa objeção. Vamos fazer um experimento mental: imagine que Deus se absteve de criar o mundo. Imagine Deus existindo sem a criação. Podemos imaginar um mundo possível no qual existe exclusivamente Deus, solitário, sozinho, sem nenhum universo nem ordem criada, sejam quais forem. Num mundo assim, Deus seria temporal? Bem, se ele tivesse um fluxo de consciência seria claramente temporal, pois haveria uma série temporal de eventos mentais ocorrendo na sua mente. Mas vamos supor que Deus existe imutavelmente nesse estado, que ele tem um estado de consciência único. Nesse caso, ele seria temporal? Bem, considero que isso está longe de ser evidente. Pelo contrário, na visão relacional do tempo, na qual o tempo é uma simultaneidade de eventos, esse estado imutável seria um estado de atemporalidade. Portanto, Deus existindo num tal estado seria, segundo penso, plausivelmente atemporal.
Alguém poderia dizer: “Um ser pessoal não pode existir em condição atemporal”. Bem, por que não? Quais são as condições suficientes para a personalidade? Bem, parece-me que a condição necessária e suficiente para a personalidade seja a autoconsciência. Conhecer a si mesmo como um eu, ter percepção de si mesmo e autoconsciência e, portanto, intencionalidade e liberdade de vontade são suficientes para a personalidade. Mas autoconsciência não é uma noção inerentemente temporal. Deus pode simplesmente conhecer toda a verdade numa única intuição da verdade sem ter de aprendê-la nem ter de chegar à sua conclusão por meio de um processo. Uma vez que a sua consciência não muda, não há razão para atribuir temporalidade a Deus. Assim, nada existe a respeito de uma vida autoconsciente que implique temporalidade, desde que considerada como autoconsciência imutável.
Quanto às outras propriedades que mencionamos, eu diria que, apesar de serem propriedades comuns às pessoas humanas (as quais, afinal de contas, são temporais), não são propriedades essenciais da personalidade. Por exemplo, considere-se a deliberação e o pensamento discursivo; isso é ausente de Deus, não tanto em razão da sua atemporalidade, mas por causa da sua onisciência. Um ser onisciente não precisa deliberar, pois já conhece as conclusões de tudo quanto ele possa pensar a respeito. E, portanto, a atividade pensante de Deus não pode ser discursiva, já que ele é um ser onisciente. Ele simplesmente conhece a verdade toda numa única intuição num único instante. Da mesma maneira, memória e antecipação não são essenciais para uma pessoa atemporal, pois não tem nada para esquecer nem para antecipar, uma vez que ela simplesmente existe atemporalmente. Não há passado nem futuro. Assim, essas qualidades, conquanto comuns às pessoas humanas, não são essenciais à personalidade, e, portanto, parece-me que não há incoerência em referir-se a Deus como um ser pessoal atemporal.
Na verdade, penso que a doutrina da Trindade pode ajudar-nos a sair dessa, porque ela fornece um modelo funcional para a existência atemporal de Deus. Quase sempre se afirma que as pessoas têm de existir em relacionamentos interpessoais, e, assim, Deus tem de ser temporal. Assume-se que as pessoas com as quais Deus se relacionaria deveriam ser pessoas humanas. Mas, segundo a doutrina cristã da Trindade, isso não é verdade. Deus, em seu próprio ser, é tripessoal, e, na unidade de seu próprio ser, ele pode gozar da plenitude de relacionamentos interpessoais no seio da própria Divindade, de modo atemporal e imutável. Tudo que o Pai sabe, o Filho e o Espírito sabem; o que o Pai ama, o Espírito e o Filho amam; o que o Filho quer, o Pai e o Espírito querem. Essa é a doutrina da pericorese, segundo a qual as três pessoas da Divindade são completamente transparentes uma para a outra e se interpenetram mutuamente. E da mesma maneira que às vezes nos referimos a dois apaixonados — sentados frente a frente, olhos nos olhos, sem dizerem palavra — como “perdidos num instante atemporal”, assim, de maneira literal, Deus, nos relacionamentos interpessoais da Trindade, pode existir num instante atemporal de amor, plenitude e bem-aventurança absolutos na autossuficiência do seu próprio ser. Portanto, não estou absolutamente convencido de que atemporalidade e personalidade sejam incompatíveis; parece-me bastante possível e plausível que Deus, enquanto ser pessoal, existe atemporalmente.
Em síntese, então, vimos um bom argumento favorável à atemporalidade divina — não decisivo, mas acho-o plausível — e, até aqui, sem uma boa razão para rejeitar a atemporalidade divina.






* Dr. Willam Lane Craig é doutor em filosofia pela Universidade de Birmingham, na Inglaterra, e em teologia pela Universidade de Munique, na Alemanha. Disponível em: http://www.reasonablefaith.org/portuguese/deus-tempo-e-eternidade. Traduzido por Marcos Vasconcelos. Revisado por Djair Dias Filho.

Nenhum comentário:

Postar um comentário